domingo, 3 de maio de 2020

A ressurreição dos santos na morte de Jesus

A ressurreição dos santos na morte de Jesus
Álvaro C. Pestana
2020
Mateus 27.50-54
50 E Jesus, clamando outra vez em alta voz, entregou o espírito. 
51 Eis que o véu do santuário se rasgou em duas partes, de alto a baixo; a terra tremeu e as rochas se partiram; 52 os túmulos se abriram, e muitos corpos de santos já falecidos ressuscitaram; 53 e, saindo dos túmulos depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos. 54 O centurião e os que com ele guardavam Jesus, vendo o terremoto e tudo o que se passava, ficaram possuídos de grande temor e disseram: 
— Verdadeiramente este era o Filho de Deus.

Mateus 27.50-54
50ὁ δὲ Ἰησοῦς πάλιν κράξας φωνῇ μεγάλῃ ἀφῆκεν τὸ πνεῦμα.
51Καὶ ἰδοὺ τὸ καταπέτασμα τοῦ ναοῦ ἐσχίσθη ἀπ’ ἄνωθεν ἕως κάτω εἰς δύο καὶ ἡ γῆ ἐσείσθη καὶ αἱ πέτραι ἐσχίσθησαν, 52καὶ τὰ μνημεῖα ἀνεῴχθησαν καὶ πολλὰ σώματα τῶν κεκοιμημένων ἁγίων ἠγέρθησαν, 53καὶ ἐξελθόντες ἐκ τῶν μνημείων μετὰ τὴν ἔγερσιν αὐτοῦ εἰσῆλθον εἰς τὴν ἁγίαν πόλιν καὶ ἐνεφανίσθησαν πολλοῖς.
54Ὁ δὲ ἑκατόνταρχος καὶ οἱ μετ’ αὐτοῦ τηροῦντες τὸν Ἰησοῦν ἰδόντες τὸν σεισμὸν καὶ τὰ γενόμενα ἐφοβήθησαν σφόδρα, λέγοντες· ἀληθῶς θεοῦ υἱὸς ἦν οὗτος.

Este texto é um grande enigma dos evangelhos. Só se encontra no Evangelho de Mateus, o que nos deve levar a pensar na relevância dele para a comunidade judaica da Palestina e para a comunidade judaica (de Antioquia?) que estava engajada na pregação aos gentios. Este é o tipo de informação que devia ser originado nas mais antigas tradições cristãs de Jerusalém e da Palestina (ALLEN, 1965, p. 296; LUZ, 1989, p. 561). 
Luz (1989, p. 562-565) sumariza a história das interpretações de Mateus 27.51-54 em cinco grupos: (i) histórico-salvífica: a salvação vai para os gentios pela cegueira dos judeus; (ii) cristológica: o poder da morte de Jesus trouxe vida; (iii) credal: o texto prova a estada de Cristo no Hades; (iv) alegórica: interpretação histórico-salvífica e existencial; (v) escatológica: o texto aponta para a futura ressurreição dos mortos na parousia
As interpretações são muitas, mas podemos classifica-las em três grupos, conforme a avaliação da realidade dos fatos: (i) algumas interpretações negam o milagre considerando-o como mito ou símbolo; (ii) outras interpretações afirmam o milagre, mas o reposicionam cronologicamente após a ressurreição de Jesus; (iii) várias interpretações afirmam o milagre sem negar a descrição cronológica de seu acontecimento. Nossa perspectiva será esta terceira, depois de avaliar as anteriores.
(i) Negação do milagre
A leitura que descarta o texto como lendário, fabuloso e, portanto, mítico e simbólico, normalmente toma como pressuposto uma forma de colonialismo cultural que desacredita das experiências dos antigos, sobretudo em matéria religiosa (FENTON, 1987, p. 444). Contudo, o texto é claro em inserir esta narrativa como ingrediente da história objetiva que está sendo narrada. Toda a narrativa da morte, sepultamento e ressurreição de Jesus, que circunda este texto, não se apresenta como literatura simbólica, lendária ou fabulosa. Logo, não se pode afirmar que Mateus inseriu um gênero literário estranho ao contexto: uma lenda no meio de uma narrativa testemunhal da história? Não parece uma opção razoável. Apesar do texto tratar de “assunto de fé, e não de demonstração objetiva [...] trata-se de uma ocorrência única que não pode ser julgada pelos cânones da experiência normal” (FRANCE, 1989, p. 401). 
A tentativa de ler o texto apenas como experiência mística em face da morte terrível e violenta de Jesus (ROBINSON, 1960, p. 231) não tem real justificação na linguagem realista e histórica do texto. 
Também a afirmação que “a lenda é uma extrapolação da fé cristã em forma de história” (FENTON, 1987, p. 444), fazendo com que Mateus tomasse um ensino figurativo e o tomasse como evento real (FILSON, 1975, p. 297) atribui ao autor do Primeiro Evangelho um erro gravíssimo. 
Davies (2009, p. 228) apresenta a ideia que a narrativa não fala de uma realidade histórica, mas olha para o futuro, a ressurreição dos mártires do passado, que ocorrerá no fim dos tempos, no tempo da ressurreição de todos os homens. Assim, ele transforma a narrativa em escatologia imaginada. Gurtner (2007, p. 152) também advoga que o texto deve ser lido como literatura apocalíptica e não historicamente. 
Hendriksen (1976, p. 975) menciona intérpretes que dizem que o que ocorreu foi apenas uma “exposição” de corpos de santos mortos: o terremoto teria aberto túmulos e Deus expôs, desta forma, os corpos dos mortos fora dos túmulos. Poderia ser um milagre divino ou uma ocorrência natural devida ao terremoto, mas não teria ocorrido nenhuma ressurreição. O problema com esta teoria é a linguagem do texto: os versos 52 e 53 falam de ressurgir e de aparecer vivos na cidade, uma vez saindo dos túmulos. 
Em resumo, o texto não é lenda fabulosa, não é relato de experiência mística, não é extrapolação do ensino ou das expectativas judaico-cristãs e não se trata de texto simbólico-apocalítico inserido no meio de um texto que descreve acontecimentos históricos. Persiste a descrição, que o próprio texto faz de si mesmo como história.
(ii) Rearranjo do milagre
Outros, já acolhendo o texto como relato de milagre de ressurreição, tentam rearranjar os eventos, para que a ressurreição destes “santos” ocorra no domingo, quando Jesus ressurgiu dos mortos: “eles ressuscitaram no mesmo momento que Jesus” (CARSON, 1994, p. 130). Hendriksen (1976, p. 975) menciona outro intérprete que também tenta projetar esta ressurreição para o domingo da ressurreição, para que Jesus seja o primeiro da ressurreição (1Co 15.20). Lenski (1964, p. 1130) cita e rejeita a suposição de uma ressurreição “gradual”, iniciando na sexta-feira e culminando em sua efetiva saída dos túmulos no domingo. 
O texto é claro em dizer que a ressurreição destes santos ocorreu no momento da morte de Jesus, e não no domingo da ressurreição. 
(iii) Acolhimento do milagre
Plummer (1910, p. 404) sumariza esta interpretação dizendo:
Aqueles que aceitam a tradição como verdade consideram-na plena de sentido espiritual compatível com o caráter sobrenatural da morte de Nosso Senhor em relação aos santos falecidos, sustentando que isto foi uma manifestação do seu poder sobre a morte e a sepultura (1) pela ressurreição de alguns do Hades, (2) por vesti-los com um corpo ressurreto, e (3) pela permissão de aparecer a aqueles que os conheciam então.

Os que acolhem o milagre da ressurreição destes santos, na sexta-feira na qual Jesus morreu, se dividem em dois grupos. De um lado estão os que creem que a ressurreição dos santos já lhes deu um corpo incorruptível – estas pessoas já estariam ressurretas como Jesus, para nunca mais morrer (LENSKI, 1964, p. 1130; HENDRIKSEN, 1976, p. 975-976; TASKER, 1980, p. 211-212). De outro lado, estão aqueles que creem que a ressurreição destes santos foi uma ressurreição do corpo biológico – como a ressurreição de Lázaro e de outras pessoas que Jesus trouxe da morte, mas que mais tarde morreram de novo. 
O que é consenso de ambas as teoria é que:
(i)                    Ocorreu uma ressurreição real;
(ii)                  Ocorreu no momento da morte de Jesus, na sexta-feira;
(iii)                Ocorreu como “profecia” da ressurreição de Jesus que ocorreria no domingo;
(iv)                Ocorreu a aparição dos santos a outras pessoas apenas no Domingo, depois da ressurreição de Jesus.
A favor da teoria da ressurreição em um corpo incorruptível fica o fato que não houve qualquer outro testemunho da vida e presença destas pessoas na igreja primitiva de Jerusalém. A frase “e apareceram a muitos” (καὶ ἐνεφανίσθησαν πολλοῖς) segundo alguns autores, implica em uma manifestação como a de Jesus após a ressurreição: uma aparição aqui e ali (HENDRIKSEN, 1976, p. 975, nota 894c). 
Também a favor da teoria da ressurreição em um corpo incorruptível temos o fato que estas pessoas ressurgiram na sexta-feira, mas só apareceram no domingo, portanto, a questão embaraçosa – “onde eles estavam de sexta-feira até domingo?” – se resolve facilmente se o seu corpo já for o corpo da ressurreição, um corpo como o de Jesus, que podia sumir e aparecer, como ocorreu nos relatos das aparições e nos 40 dias que se seguiram à ressurreição de Jesus. Assim como Jesus não estava sempre visível e sempre com as pessoas, assim também “Deus não teria dificuldade de achar um lugar para estes santos” (LENSKI, 1964, p. 1131). Se fossem pessoas normais, com um corpo biológico, tal demora junto aos túmulos seria embaraçosa. Hendriksen (1976, p. 976) considera esta demora de revelar-se como um evento não explicado, mas paralelo à situação das aparições do Cristo ressurreto.
A ideia de uma ressurreição gradual, começando na sexta-feira e culminando no domingo não faz sentido, pois não é o que o texto afirma (LENSKI, 1964, p. 1130).
A maior parte dos intérpretes entende que na morte de Jesus, alguns dos homens santos do Antigo Testamento teriam ressuscitado com a morte de Jesus (MOUNCE, 1966, p. 270-271). E que não iriam mais morrer, seriam tomados para o céu e ficariam com Deus até o dia da volta de Jesus, o dia da ressurreição geral etc. O problema com este ponto de vista é que Jesus é o Primogênito dentre os mortos (Cl 1.18) e as primícias da ressurreição (1Co 15.23), ou seja, o primeiro a ressurgir para nunca mais morrer. Além disso, não há qualquer atestação de ressurreição de nenhum vulto histórico importante do Velho Testamento nesta época. O próprio Pedro falou que Davi estava no seu túmulo naqueles dias (At 2.29). Ora Davi, seria um "santo" candidato à ressurreição. Logo, esta teoria fica com certas dificuldades.
Broadus (1968, p. 736-737) apresenta a teoria que estes “santos” seriam os “cristãos” (antes do Cristianismo), ou seja, pessoas que seguia Jesus e que teriam morrido antes da morte de Jesus. Eles apareceriam para seus conhecidos para dizer que não perderam a participação no Reino e que eram, junto com Cristo, as primícias dos que dormem. Novamente, se esta teoria for vinculada à teoria da ressurreição em um corpo incorruptível, o “sumiço” destes ressurretos depois de um tempo fica explicada, mas se a teoria da ressurreição em um corpo biológico for acolhida, resta o problema destas pessoas serem acolhidas nas primeiras comunidades cristãs, coisa de que não temos notícia ou qualquer indicação.
A favor da teoria de um corpo biológico está o fato que Jesus é o primeiro da ressurreição, o Primogênito dentre os mortos (Cl 1.18), ou seja, o primeiro a ressurgir para nunca mais morrer. Jesus somente é chamado de “as primícias dos que dormem” (1Co 15.23). Seria estranho que outros ressurgissem com ele para nunca mais morrer, logo, os que ressurgiram foram santos que, como outros ressurretos por Jesus, voltariam a viver e morrer normalmente. 
Assim, uma outra teoria proposta é que, na morte de Jesus, alguns do povo de Deus, que a Bíblia chama sem constrangimento de "santos" teriam voltado à vida ---- seriam pessoas do povo de Israel que tinham morrido naqueles dias, seus corpos ainda não tinham se decomposto e quando Jesus morreu e venceu a morte, libertou-os da morte e eles puderam viver de novo. Os judeus criam que a alma do morto ficava perto do corpo até ver os primeiros sinais de apodrecimento. Quando o espírito (ou alma) via isto, logo se retirava para o além. Não estou afirmando que isto era verdadeiro e nem afirmado pelo Velho Testamento, mas na morte de Jesus ele efetivou uma libertação da morte que permitiu que alguns "santos mortos recentemente" voltassem à vida. Eles só entraram em Jerusalém no Domingo, depois da ressurreição de Jesus. Isto quer dizer que o que os salvou da morte, foi a morte de Jesus, mas o que permitiu que sua salvação fosse atestada por outros, foi a ressurreição de Jesus. Assim, estas pessoas voltaram a viver vidas normais e naturais, por causa da morte de Jesus. Claro que mais tarde, elas morreram. Não se trata de pessoas ressurretas para nunca mais morrer como será na ressurreição final (1Co 15; 1Ts 4), mas sim pessoas ressurretas como Lázaro, a filha de Jairo etc. Creio nesta interpretação, apesar de reconhecer que a menção de “e apareceram a muitos” (καὶ ἐνεφανίσθησαν πολλοῖς) ser um forte argumento para o fato destas pessoas serem corpos espirituais que “se manifestam” a alguns como Jesus fez.
Conforme Luz (1989, p. 562-565) a interpretação credal se utiliza deste o texto como mais uma “prova” da estada de Cristo no Hades. Esta interpretação tornou-se importante na história do cristianismo a ponto deste assunto vir a integrar o credo no Século Quarto. Lenski (1964, p. 1129) considera esta ligação como inaceitável. 
Apesar de toda esta discussão e de não compreendermos exatamente o que tipo de ressurreição ocorreu, fica bem clara a lição ou a dedução teológica do acontecimento: a morte de Jesus dá vida aos santos! A morte dele liberta da morte e dá vida. Numa analogia da morte do Sumo-Sacerdote que libertava as pessoas presas nas cidades de refúgio (Nm 35) por conta de seu envolvimento com a morte de alguém, assim, de um modo mais glorioso, a morte de Jesus liberta os mortos.
De fato, estamos acostumados a dizer que a ressurreição de Jesus marcou a vitória sobre a morte, e estamos corretos nesta afirmação que é confirmada em muitos textos bíblicos. Contudo, o que este texto também ensina é que, a morte de Jesus também é triunfo sobre a morte, por mais paradoxal que seja. 
Bibliografia citada: 
ALLEN, Willoughby C. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel According to S. Matthew. Third Edition. Edinburgh: T. & T. Clark, 1965.
BROADUS, John A. Comentario Expositivo sobre el Nuevo Testamento – Tomo I – El Evangelio Segun Mateo. Segunda Edicion. [El Paso, TX]: Casa Bautista de Publicaciones, 1968.
CARSON, Donald A. “Matthew” In: BARKER, K. L.; KOHLENBERGER, J. R. Zondervan NIV Bible Commentary – Vol. 2 – New Testament. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1994.
DAVIES, Margaret. Matthew. Second Edition. Sheffield: Phoenix Press, 2009. 
FENTON, J. C. The Gospel of St. Matthew. London: Penguim Books, 1987. 
FILSON, Floyd V. The Gospel According to St. Matthew. London: Adam & Charles Black, 1975
FRANCE, R. T. The Gospel According to Matthew: An Introduction and Commentary. Leicester: Inter-Varsity Press, 1989
GURTNER, Daniel M. The Torn Veil – Matthew’s Exposition of the Dead of Jesus. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
HENDRIKSEN, William. The New Testament Commentay – The Gospel of Matthew. Edinburg: The Banner of Trust, 1976.
LENSKI, R. C. H. The Interpretation of St. Matthew’s Gospel. Minneapolis (Minnesota): Augsburg Publishing House, 1964.
LUZ, Ulrich. Matthew 21-28 – a commentary. Minneapolis: Fortress Press, 2005. 
MOUNCE, Robert. H. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo – Mateus. São Paulo: Vida, 1996.
PLUMMER, Alfred. An Exegetical Commentary on the Gospel According to St. Matthew. London: Elliot Stock, 1910.

TASKER, R. V. G. O Evangelho Segundo Mateus: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1980.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Arrependimento de Deus

Arrependimento de Deus
Álvaro C. Pestana
2020

A linguagem da Bíblia é sempre uma tentativa divina de encarnar-se no humano: Deus usa nossos termos para nos explicar as coisas[1].
Deus não pode usar sua linguagem para nos explicar as coisas, assim como não podemos usar linguagem técnica de adulto para explicar temas complicados para as crianças -- neste caso, também temos que adaptar nossa fala.
Podemos pensar, inicialmente, que falar de “arrependimento” de Deus como uma fala metafórica. Estamos transportando uma atitude humana para o divino. 
A “metáfora” é a grande artífice da linguagem teológica, uma vez que Deus só pode falar ao homem em termos humanos:
Metáfora deriva do grego μεταφορά, "transferência, transporte para outro lugar", composto de μετά (meta),"entre" e φέρω (pherō), "carregar". Em seu sentido literal, o verbo grego metaphrein seria traduzido pelo verbo latino transferire. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Metáfora).

Na teologia temos, metáfora ou teologia metafórica:
É a figura de linguagem em que uma palavra ou expressão com significado aceito e literal é usada em lugar de outra para deixar transparecer alguma semelhança entre elas. A teologia metafórica sustenta que só se pode falar de Deus por meio de metáforas. (GRENZ; GURETZKI; NORDLING, 1999, p. 86-87).

Novamente, tudo o que falamos sobre Deus envolve, em um grau maior ou menor, alguma metáfora. Quando dizemos: “Deus é nosso Pai”, certamente dizemos algo verdadeiro sobre a forma como Deus nos trata: com amor, com carinho, com cuidado etc. Por outro lado, a metáfora não pode ser levada adiante de modo literal ou fora de seus limites intencionais originais. Se a partir da frase “Deus é nosso Pai”, começarmos a perguntar, “Então, quem é o nosso Avô, o pai de nosso Pai?”, estaremos ferindo a intenção original da metáfora que era descrever o cuidado de Deus conosco e não a ancestralidade divina. 
Quando lemos no Salmo “O Senhor é meu pastor”, a metáfora, novamente, descreve o divino por meio de uma figura humana, mas a metáfora tem que parar por aí. Se pensarmos que pastores de rebanhos matam suas ovelhas para fazer um churrasco com sua carne, isto já não se aplica ao modo como Deus nos trata. Só se deve levar em conta o ponto de comparação da metáfora e não todos os sentidos possíveis daquela associação de Deus com a figura de um pastor de ovelhas da Palestina. 
Logo, quando vemos a Bíblia, falar que “Deus se arrependeu”, temos que buscar no contexto qual o sentido deste uso de um termo humano para designar do divino. Da mesma forma, em outro lugar, da Bíblia, ao lermos que “Deus não se arrepende”, temos que entender, no contexto, o que quer dizer com este uso da linguagem. 
Assim, quando a Bíblia em um contexto, fala do arrependimento divino, ela está convidando a aproximarmos o comportamento divino ao comportamento humano para podermos, por identificação, compreender. Contudo, as aproximação do divino ao humano não deve levar o humano a atribuir defeitos humanos ao divino.
O caso do "arrependimento" divino é assim:
·      Há textos em que lemos que Deus não se arrepende (1Sm 15.29; Nm 23.19; Ez 24.14; Sl 110.4 [Hb 7.21[2]]; Jr 4.28), 
·      Mas há textos que dizem claramente que Deus e arrependeu (Gn 6.6, 7; Êx 32.14; 1Sm 15.11, 35; 2Sm 24.16; 1Cr 21.15; Jr 26.19; Am 7.3, 6; Jn 3.10). 
·      Há textos em que se pede que Deus se arrependa (Êx 32.12; Jn 3.9) 
·      E outras passagens em que Deus promete que vai se arrepender tanto do mal como do bem que ia fazer (Jr 18.8, 10; 26.3, 13). 
·      Uma das mais belas descrições de Deus no Velho Testamento é que ele "se arrepende do mal" (Jl 2.13-14; Jn 4.2). 
·      O não-arrependimento de Deus, muitas vezes, é acompanhado de ações contrárias à sua primeira ação (Zc 8.14-15).
Repare que os textos neste assunto são todos no Velho Testamento (exceto uma citação do VT no NT). Lendo os textos no contexto, percebemos que não há contradição. 
Por exemplo, na história de Saul, temos dois usos contraditórios da ideia, sem real contradição. 
(i) No início da narrativa, em 1Samuel 15.11, Deus diz: “Arrependo-me de haver constituído rei a Saul” (ARA). 
(ii) Contudo, mais tarde na narrativa temos Samuel avisando a Saul que Deus escolheria outra pessoa para ser rei no lugar dele e completando o anúncio com a frase “A Glória de Israel não mente nem se arrepende; porquanto não é homem, para que se arrependa” (1Sm 15.29 – ARA). 
(iii) O capítulo é finalizado com a frase: “O Senhor se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel” (1Sm 15.35 – ARA).
Ou seja, os textos que falam que Deus não se arrepende, estão dizendo que Deus não é movido pela inconstância humana, pela falta de capacidade de realizar seus intentos e que ele não falha para ter que mudar de ideia. Esta frase enfatiza o poder e a constância divinos (1Sm 15.29; Nm 23.19; Ez 24.14; Sl 110.4 [Hb 7.21[3]]; Jr 4.28). 
Por outro lado, os textos que falam que Deus se arrependeu, está dizendo que Deus, conforme sua justiça ou sua misericórdia, está agindo de forma a dar uma resposta aos seres humanos. Ele pode se arrepender do bem que estava fazendo e enviar castigo, ou pode arrepender-se do castigo que projetava fazer e perdoar. Esta frase enfatiza o relacionamento real e verdadeiro de Deus com os homens (Gn 6.6, 7; Êx 32.14; 1Sm 15.11, 35; 2Sm 24.16; 1Cr 21.15; Jr 26.19; Am 7.3, 6; Jn 3.10).
O Livro de Jonas é um excelente exemplo do arrependimento divino e sua ligação com o caráter divino e com a condicionalidade das profecias. A obra é qualificada como uma “metaprofecia”, ou seja, uma profecia que explica a profecia. E um dos pontos mais salidentes é que “toda previsão do profeta é condicionada pela liberdade humana”. Ou seja, o que é dito não é dito como destino inexorável, mas como convite a assumir outro curso de ação. Foi isto o que ocorreu em Nínive. Eles se arrependeram e Deus se arrependeu da profecia e do juízo justo que havia planejado. O livro de Jonas é lido no serviço religioso judaico do Dia da Expiação, Yom Kipum (REHFELD, 2003, p. 151-155).
Deus não mente, Deus não erra, Deus não peca. Logo, coisas como estas, que normalmente geram o arrependimento humano, não tem ligação com o arrependimento divino. Este é o momento de aprender usar a metáfora apenas no ponto necessário da comparação.
Não adianta absolutizar uma das duas expressões, rejeitando a outra, como fazem os “teólogos de frases feitas” dizendo: “Deus não se arrepende... Deus não é homem!”... Tal simplificação da Bíblia é um convite à contradição e só se mantêm com muita teimosia contra o Livro Sagrado.
A linguagem bíblica não é linguagem técnica, nem linguagem jurídica e nem ainda linguagem filosófica. A maior parte da Bíblia usa linguagem poética e popular: a linguagem do povo. Assim, o sentido vem do contexto e vem de aprender usar as metáforas na intenção do discurso. 
O Deus da Bíblia é poderoso mas relaciona-se conosco de modo que ele promete mudar de ação de conformidade com a nossa ação, tanto para o bem como para o mal. Logo, as cartas não estão marcadas, o destino não está decidido, e tudo não está escrito... cumpre a nós agir de acordo com a Revelação Divina. 
A despeito das frequentes declarações em contrário, não há nenhuma contradição inerente entre uma afirmação mais antropomórfica do arrependimento de Deus e um entendimento mais espiritual do mesmo. Esta coexistência é baseada na polaridade da experiência de Deus. Yahweh é, por um lado, o “Deus Zeloso”, logo, ele não precisa ser arrepender de nada, e por outro lado, ele é “gracioso e misericordioso”, de forma que um desastre planejado não precisa ser sua última palavra” (STOEBE, 1997, p. 739).

Em conclusão, esta dificuldade é muito boa para nos ensinar um princípio hermenêutico importante. A revelação da Escritura exige ponderação e sabedoria. O exemplo abaixo, do Livro de Provérbios, é um alerta para aprendermos a dialogar com os textos bíblicos, buscando o espírito da Escritura, já que ela é a Escritura do Espírito:
4 Não responda ao insensato
segundo a sua tolice,
para que você não se torne
semelhante a ele.
5 Responda ao insensato
segundo a sua tolice,
para que ele não seja sábio
aos seus próprios olhos (Pv 26.4-5).

Veja que a contradição não é feita por acaso. Um verso sucede ao outro. A sabedoria existe em aprender a ponderar as aparentes contradições em um diálogo, uma dialética, que nos leva adiante no conhecimento de Deus, do mundo e de tudo mais, afinal, a vida humana não é simples e sem contradições – pelo contrário, parece que a vida é o contínuo enfrentar o irreconciliável. Deus nos trata como filhos que ele quer amadurecer e fazer crescer. 
Termos hebraicos e gregos
A discussão sobre o “arrependimento de Deus” pertence ao Antigo Testamento, pois a expressão não ocorre, desta forma, no Novo Testamento, embora em expressões perifrásicas e em conceitos teológicos, o conceito persista até mesmo no Novo Testamento. Os vocábulos hebraicos para o tema são:
Nocham
·      נֹחַם = arrependimento (masc.) (DINOTOS, 1962, p. 270); 
·      נֹחַמׇה = arrependimento, consolação, restauração (fem.) (DINOTOS, 1962, p. 270).
·      נחם (verbo) = lamentar, sentir pesar, uma mudança de opinião, ceder, arrepender-se, confortar-se ou consolar-se (sobre uma situação triste ou ruim); (HOLLADAY, 2010, p. 332). 
Shuv – na Bíblia tem uns dez sentidos diferentes (HOLLADAY, 2010. p. 515-517), mas três são destacados com respeito ao tema “arrependimento” (i) O primeiro sentido básico é “voltar-se, retornar” geralmente falando de pessoas e às vezes de Deus; (ii) o segundo uso é como verbo auxiliar para enfatizar repetição do verbo principal; (iii) o terceiro uso, teologicamente mais relevante, é o arrependimento: voltar para a comunidade da Aliança (HAMILTON, 1998, p. 1532-1533).
·      שׁוּב = (verbo) voltar, repetir, trazer de volta (DINOTOS, 1962, p. 428);
·      שׁוּב = voltar-se, retornar (HAMILTON, 1998, p. 1534);
Teshuvah – na Bíblia não ocorre como arrependimento, mas hoje em dia é muito usado pelos judeus para falar do retorno à aliança (REHFELD, 2003, p. 152). 
·      תְשׁוּבׇה = volta, retorno, resposta, arrependimento, retorno ao nome do Senhor (DINOTOS, 1962, p. 469);
·      תְשׁוּבׇה = resposta (ACHIASAF, 2018, p. 313);
·      חֲזׇרׇה תְשׁוּבׇה = penitência (ACHIASAF, 2018, p. 313).
·      תְשׁוּבׇה = retornar (para um lugar), resposta (HOLLADAY, 2010, p. 563).
Charatah – na Bíblia não ocorre como arrependimento. 
·      חֲרׇטׇה = arrependimento (ACHIASAF, 2018, p. 27);
·      חֲרׇטׇה = mágoa, pesar, arrependimento [do hebraico mishnaico e talmúdico] (DINOTOS, 1962, p. 149);
Os vocábulos gregos sobre o arrependimento não são tão importantes para nossa discussão quanto os termos hebraicos, pois não se aplicam diretamente a Deus. O tema ocorre no Novo Testamento em expressões, normalmente vindas da Tanakh. Por exemplo: Atos 15.16[4] fazendo uma alusão rápida, mais ou menos livre, a Jeremias 12.15[5]. O texto de Jeremias falava de Deus “voltando” (אָשׁ֖וּב), que corresponde a uma “conversão” (ἀναστρέψω) no texto de Atos. 
Metanoia
·      μετανοία = remorso, arrependimento, convesão (GINGRICH; DANKER, 1984, p. 134)
·      μετανοέω = sentir remorso, arrepender-se (GINGRICH; DANKER, 1984, p. 134)
·      μεταμέομαι = arrepender-se, sentir pesar (GINGRICH; DANKER, 1984, p. 134)


Bibliografia citada:
DINOTOS, Sábado. DICIONÁRIO HEBRAICO-PORTUGUÊS. São Paulo: Editora H. Koersen Ltda., 1962.
GINGRICH, F. W.; DANKER, F. W. LÉXICO DO NOVO TESTAMENTO GREGO PORTUGUÊS. São Paulo: Vida Nova, 1984.
GRENZ, Stanley J.; GURETZKI, David; NORDLING, Cherith Fee. DICIONÁRIO DE TEOLOGIA: EDIÇÃO DE BOLSO. São Paulo: Vida, 2000.
HAMILTON, Victor P. שׁוּב In WILSON, M. R. נחם In HARRIS, R. Laird; ARCHER JR, Gleason L.; WALTKE, Bruce K. (Ed.s). DICIONÁRIO INTERNACIONAL DE TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1532-1534
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WIKIPÉDIA “metáfora” Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Metáfora. Acessado em 30 de abril de 2020.



[1] João 3.12
[2] οὐ μεταμεληθήσεται·
[3] οὐ μεταμεληθήσεται·
[4] μετὰ ταῦτα ἀναστρέψω καὶ ἀνοικοδομήσω τὴν σκηνὴν Δαυὶδ τὴν πεπτωκυῖαν καὶ τὰ κατεσκαμμένα αὐτῆς ἀνοικοδομήσω καὶ ἀνορθώσω αὐτήν,
[5] וְהָיָ֗ה אַֽחֲרֵי֙ נָתְשִׁ֣י אֹותָ֔ם אָשׁ֖וּב וְרִֽחַמְתִּ֑ים וַהֲשִׁבֹתִ֛ים אִ֥ישׁ לְנַחֲלָתֹ֖ו וְאִ֥ישׁ לְאַרְצֹֽו׃