OUDEPO – οὐδέπω – “Ainda não”
Análise de uma questão difícil.
Álvaro C. Pestana - 2019
O evento da conversão dos samaritanos narrado em Atos 8 esclarece o significado a imposição de mãos apostólicas, ocorrido em Atos 6.6 e 19.6. Esta imposição de mãos, deu aos que a receberam, dons de milagres e assemelhados. Depois desta imposição de mãos, em Atos 6.8, Estevão passa a fazer milagres, coisa inédita para alguém fora do círculo dos Doze. Depois disto em Atos 8.6, Filipe é apresentado como alguém que também faz milagres. Assim, por Estevão e Filipe terem recebido a imposição de mãos apostólicas em Atos 6.6, inferimos que este dom de milagres foi dado a eles.
Mais tarde no livro de Atos, a imposição de mãos de Paulo sobre doze seguidores de João Batista, rebatizados no batismo em nome de Jesus (At 19.6-7), confirma a informação de Atos 8.18 obtida da constatação de Simão, o Mago, que percebeu que “pelo fato de os apóstolos imporem as mãos, era concedido o Espírito Santo”.
Simão já tinha observado a capacidade de Filipe de fazer milagres (At 8.12-13). Contudo, com a vinda dos apóstolos Pedro e João, ele notou um poder diferente e maior: o poder de conceder o Espírito Santo por meio da imposição de mãos (At 8.18-19).
Destes eventos, deduzimos que somente pela imposição de mãos de um apóstolo o Espírito Santo seria concedido juntamente com o dom de realizar milagres.
O resumo geral é o seguinte. O Espírito Santo é doado, segundo o livro de Atos, em três formas: (1) Por meio de ser batizado no Espírito Santo; (2) Por meio de imposição de mãos dos apóstolos; (3) Por meio do batismo cristão (nas águas). As duas primeiras formas já não estão mais disponíveis hoje em dia, logo, os cristãos, hoje em dia, recebem a plenitude do Espírito por meio do batismo (nas águas) em nome de Jesus Cristo (At 2.38-39). Um quadro[1]geral sobre a doação do Espírito Santo, é apresentado:
FORMA DE RECEBER
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Receber o Espírito Santo ao ser batizado no/com Espírito Santo
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Receber imposição de mãos de um apóstolo
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Receber o Espírito Santo no batismo (águas) em nome de Jesus.
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EVENTOS e EXEMPLOS
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(a) Os doze no dia de Pentecostes (At 2.1-4, 33)
(b) Cornélio e sua casa (At 10.44-48; 11.15-18; 15.8)
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(a) Os sete helenistas (At 6.6; 6.8; 8.12-13)
(b) Os samaritanos (At 8.14-19)
(c) Os doze homens batizados por Paulo (At 19.1-7)
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(a) Os quase 3000 no Pentecostes (At 2.38-39);
(b) Saulo (At 9.17-18);
(c) Os coríntios (1Co 12.13);
(d) Todo o cristão recebe o Espírito no batismo (At 19.1-4).
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PROPÓSITO
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(a) Para os apóstolos: poder para testemunhar (At 1.8);
(b) Para Cornélio e sua casa: para que fossem batizados em Cristo (At 10.47-48; 11.17-18; 15.7-9).
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(a) Conceder dons milagrosos (At 8.18; 19.6; 2Tm 1.6)
(b) Confirmar a palavra pregada (Hb 2.3-4; Mc 16.20).
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(a) Conceder o Espírito Santo (At 2.38-39);
(b) Realizar a habitação do Espírito (Rm 8.11; 1Co 12.13; Gl 3. Ef 1.13-14);
(c) Conceder a vida no Espírito (Gl 5.16, 22-23; Ef 5.18; 6.18).
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DURAÇÃO
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àOcorreu apenas duas vezes, sendo que a segunda vez foi uma exceção para mostrar que Deus aceita os gentios: Atos 2 e Atos 10.
àAtos 11.16 mostra que os eventos de Atos 2 e Atos 10 são similares e únicos – não se repetiam na igreja antiga.
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àOcorreu durante a vida dos apóstolos.
àCom a morte deles, esta forma de receber o Espírito cessou.
àA palavra já foi confirmada
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àOcorre toda vez que um cristão é batizado (At 2.38; 1Co 12.13).
àVai durar até o fim dos tempos, pois somos selados com o Espírito para o dia da redenção (Ef 1.13-14; 4.30).
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DISPONIBILIDADE HOJE EM DIA
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Não disponível
Pois a promessa de Atos 1.8 já se cumpriu e os gentios já foram aceitos na igreja.
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Não disponível
Pois não há apóstolos e nem a necessidade de nova confirmação da palavra.
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Disponível
Até o fim dos tempos os cristãos recebem o Espírito Santo (Ef 4.30).
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Contudo, apesar desta solução razoável e quase consensual em nossa comunidade, uma questão específica fica para ser resolvida em Atos 8.14-19.
Esta questão diz respeito ao verso 16 que afirma que os samaritanos ainda não tinham recebido o Espírito Santo. O que eles não tinham recebido? No texto grego-português abaixo, assinalamos a palavra οὐδέπω, “ainda não”, que carece de esclarecimentos para se compreender o que foi que faltou para os samaritanos.
Texto grego
Nestle-Aland28 |
Tradução
Nova Almeida Atualizada |
14 Ἀκούσαντες δὲ οἱ ἐν Ἱεροσολύμοις ἀπόστολοι ὅτι δέδεκται ἡ Σαμάρεια τὸν λόγον τοῦ θεοῦ, ἀπέστειλαν πρὸς αὐτοὺς Πέτρον καὶ Ἰωάννην, 15 οἵτινες καταβάντες προσηύξαντο περὶ αὐτῶν ὅπως λάβωσιν πνεῦμα ἅγιον· 16 οὐδέπω γὰρ ἦν ἐπ’ οὐδενὶ αὐτῶν ἐπιπεπτωκός, μόνον δὲ βεβαπτισμένοι ὑπῆρχον εἰς τὸ ὄνομα τοῦ κυρίου Ἰησοῦ. 17 τότε ἐπετίθεσαν τὰς χεῖρας ἐπ’ αὐτοὺς καὶ ἐλάμβανον πνεῦμα ἅγιον. 18 Ἰδὼν δὲ ὁ Σίμων ὅτι διὰ τῆς ἐπιθέσεως τῶν χειρῶν τῶν ἀποστόλων δίδοται τὸ πνεῦμα, προσήνεγκεν αὐτοῖς χρήματα 19 λέγων· δότε κἀμοὶ τὴν ἐξουσίαν ταύτην ἵνα ᾧ ἐὰν ἐπιθῶ τὰς χεῖρας λαμβάνῃ πνεῦμα ἅγιον.
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14 Quando os apóstolos, que estavam em Jerusalém, ouviram que o povo de Samaria tinha recebido a palavra de Deus, enviaram-lhes Pedro e João. 15 Chegando ali, oraram por eles para que recebessem o Espírito Santo, 16 pois o Espírito ainda não havia descido sobre nenhum deles. Tinham apenas sido batizados em nome do Senhor Jesus. 17 Então lhes impuseram as mãos, e eles receberam o Espírito Santo. 18 Quando Simão viu que, pelo fato de os apóstolos imporem as mãos, era concedido o Espírito Santo, ofereceu-lhes dinheiro, 19 dizendo: — Deem também a mim este poder, para que a pessoa sobre a qual eu impuser as mãos receba o Espírito Santo.
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No texto acima, o advérbio οὐδέπω, “ainda não”, está em negrito. Os verbos relativos à doação do Espírito estão sublinhados:
· v. 15 - λάβωσιν = recebessem -------- verbo λαμβάνω = receber
· v. 16 - ἐπιπεπτωκός = descido ------- verbo ἐπιπίπτω = cair
· v. 17 - ἐλάμβανον = receberam ------ verbo λαμβάνω = receber
· v. 18 - δίδοται = era concedido ------ verbo δίδωμι = dar
· v. 19 - λαμβάνῃ = receba -------------- verbo λαμβάνω = receber
Neste parágrafo, o verbo mais citado é “receber” (3x), enfocando a perspectiva dos samaritanos. Do ponto de vista de Deus, o verbo utilizado é “dar” (1x). O verbo “cair/descer” (1x) enfatiza o movimento de envio do Espírito de Deus para os homens.
O que ocorreu em Samaria? O que os discípulos batizados de origem samaritana “ainda não”, οὐδέπω, tinham recebido? Ou para ser mais preciso, o que “ainda não havia caído sobre eles”?
Teoria 1: Os samaritanos não foram batizados com o Espírito
Em resumo, a esta teoria afirma que o que os samaritanos não receberam foi a “descida (queda) do Espírito sobre eles”. Os proponentes desta ideia se apoiam no fato que o verbo “cair” só é aplicado à vinda do Espírito Santo nos casos de Atos 2 e Atos 10. Assim, quando Lucas diz que o “Espírito não tinha caído”, estaria dizendo que o que ocorreu em Atos 2 ou que ocorreria, no futuro, em Atos 10, não ocorreu aqui:
“... toda vez que Lucas usa a expressão dizendo que o Espírito Santo “desceu” ou “caiu sobre” eles, sem exceção, está descrevendo a capacitação miraculosa com os dons milagrosos do Espírito.” (LINCOLN, 2016, p. 181).
“ἐπιπίπτειν é uma palavra lucana (duas vezes em Lc; sete vezes em At; quatro (três) vezes no resto do NT), usada exclusivamente na primeira parte de Atos para falar do dom do Espírito, nunca usado assim na segunda parte. Lucas nunca usa o simples πίπτειν do Espírito.” (BARRETT, 1994, p. 411)
Outro argumento a favor do fato que o que os samaritanos receberam, por meio de Pedro e João, eram dons milagrosos, vem do comportamento de Simão, o mago, que viu algo fora do comum acontecendo:
“... os apóstolos mandaram Pedro e João, dois dos apóstolos, para Samaria com um fim especial: para que os batizados em Samaria pudessem receber o Espírito Santo (At 8.14-15). Será que temos uma contradição? Pois já falamos que estas pessoas em Samaria já tinham recebido o Espírito Santo quando foram batizadas nas águas. E, receberam mesmo, obedecendo Atos 2.38. Mas, este dom do Espírito Santo não é milagroso enquanto os que Pedro e João iriam transmitir eram milagrosos. A transmissão deste dom do Espírito é até mesmo visual, porque Simão “viu” que este dom foi transmitido, quis comprar o dom com dinheiro (At 8.17-18).” (DUTTON, 1980, p. 78).
Esta teoria é a muito difundida e tem a vantagem de dizer que os samaritanos tinham recebido o dom Espírito Santo no batismo (At 2.38), mas o que não havia ocorrido era a “descida do Espírito Santo”, que daria dons miraculosos para eles. Como os samaritanos tinham sido batizados por Filipe, eles teriam recebido o que é normal receber no batismo, conforme Atos 2.38: (a) perdão de pecados; (b) dom do Espírito Santo (que é o próprio Espírito Santo como dom).
O grande problema desta teoria vem do advérbio “ainda não”, οὐδέπω. O uso deste advérbio por Lucas sugere que algo deveria ter ocorrido e que ainda não ocorreu. O advérbio οὐδέπω, “ainda não”, indica “a negação de extensão de tempo até e além de um ponto esperado” (LOUW; NIDA, 2013, p. 575, §67.129).
Texto grego
Nestle-Aland28 |
Tradução
Nova Almeida Atualizada |
16 οὐδέπω γὰρ ἦν ἐπ’ οὐδενὶ αὐτῶν ἐπιπεπτωκός, μόνον δὲ βεβαπτισμένοι ὑπῆρχον εἰς τὸ ὄνομα τοῦ κυρίου Ἰησοῦ.
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16 pois o Espírito ainda não havia descido sobre nenhum deles. Tinham apenas sido batizados em nome do Senhor Jesus.
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Se Lucas quisesse dizer que o Espírito não “desceu” ou “caiu” sobre eles e que isto não precisaria ter acontecido, o texto poderia ter sido redigido com a partícula negativa “não”, οὐ, da forma como alteramos o texto grego no próximo quadro:
Texto grego hipotético
alterado |
Tradução
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16 οὐ γὰρ ἦν ἐπ’ οὐδενὶ αὐτῶν ἐπιπεπτωκός, μόνον δὲ βεβαπτισμένοι ὑπῆρχον εἰς τὸ ὄνομα τοῦ κυρίου Ἰησοῦ.
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16 pois o Espírito não havia descido sobre nenhum deles. Tinham apenas sido batizados em nome do Senhor Jesus.
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Nenhum manuscrito grego tem esta leitura ou variante. Todos têm οὐδέπω. Logo, esta leitura não é possível para nós.[2]Se queremos levar a sério o que Lucas escreveu, temos que encarar a força do advérbio “ainda não”, οὐδέπω. O que observa comparando o original com nossa versão hipotética pode ser apreciado na citação abaixo:
“Há uma distinção importante entre as palavras oudepoe ou, assim como há na maioria das línguas alguma distinção simbólica entre um evento que ainda não acontece[u] e o que não acontece (BRUNER, 1983, p. 139)
Quando se diz que o “ainda não”, οὐδέπω, refere-se aos dons milagrosos do Espírito (ligados ao verbo “cair/descer” = ἐπιπίπτω), cria-se um problema: tal forma de falar acaba afirmando que uma “descida do Espírito” deveria acontecer e não aconteceu. Ou seja, estaremos dizendo que o evento de Atos 2 deveria ocorrer de novo em Samaria.
Afirma-se que os cristãos batizados conforme Atos 2.38 devem esperar “o cair do Espírito” na forma de dons milagrosos para todos os crentes é uma posição não coerente com o resto do Novo Testamento e não é aceitável para os cessacionistas.
Afirmar que o “cair do Espírito” refere-se apenas aos dons milagrosos e não ao próprio dom do Espírito Santo conforme At 2.38, indiretamente afirma a próxima teoria, pois o “ainda não” sugere que algo normal não aconteceu, ou seja: estamos afirmando que os eventos de “cair/descer do Espírito” sobre os crentes é uma experiência normal a ser esperada em toda comunidade cristã em todos os tempos.
Teoria 2: Os samaritanos não foram batizados com o Espírito mas deviam ter sido
A leitura do “ainda não”, οὐδέπω, por grupos carismático-pentecostais poderia favorecer sua teoria que todos os cristãos de todas as épocas poderiam e deveriam receber dons milagrosos do Espírito Santo.
Conforme bem observou MacArthur Jr. (1981, p. 90), o pensamento carismático-pentecostal tem em Atos 8.16 “um exemplo da doutrina da subsequência”. Ou seja, “ainda não”, οὐδέπω, “não significa apenas algo que não aconteceu, mas que algo que deveria ter acontecido, ainda não aconteceu” (MACARTHUR JR., 1981, p. 90).
Neste ponto, a teologia pentecostal-carismática passa a reclamar a necessidade da vinda do Espírito de modo milagroso para todos os cristãos. No ponto de vista desta teologia, isto devia ter ocorrido em Samaria e “ainda não” ocorreu. A visita dos apóstolos remediou a situação.
Embora Atos 2.38 afirme que o batizado recebe perdão e o dom do Espírito Santo, o movimento pentecostal considera que o sinal da vinda do Espírito é falar em línguas ou apresentar alguma forma miraculosa de atuação do Espírito. Eles chamam este evento de “Pentecostes Samaritano”. A ênfase deles é que os pentecostais precisavam manifestar visivelmente, pelo dom de línguas, a vinda do Espírito:
“Como poderiam saber que haviam sido batizados com o Espírito Santo, a menos que o demostrassem por um meio que fosse além de um êxtase expressado em alegria?” (BRUNELLI, vol. 2, 2016, p. 228)
Assim, os pentecostais e carismáticos vão dizer que o Espírito não veio aos samaritanos pelos meios normais: “não houve ali batismo com o Espírito Santo” (BRUNELLI, 2016, p. 227). A suposição é que o “ainda não” refere-se ao “batismo com o Espírito Santo”[3][sic.].
O primeiro problema com esta teoria que o “ainda não” refira-se a um “batismo com/no Espírito Santo” decorre do fato que o livro de Atos mostra que o que ocorreu em Atos 2 só ocorreu de novo em Atos 10 e pela narrativa bíblica, nunca mais (At 11.15-16). Logo, o “ainda não” não pode referir-se ao “ser batizado no/com o Espírito”.
Um segundo problema é que Efésios 4.5 afirma que há um só batismo para a comunidade cristã, logo, o batismo nas águas é o que permanece e os outros atos descritos com o verbo “batizar” fazem parte da história, mas não do “ainda não” da igreja, ou seja, das coisas que deveriam sempre acontecer.
Em terceiro lugar, o problema com esta teoria é que se este “ainda não” refere-se à doação dos dons milagrosos a todos os cristãos como uma “doutrina da subsequência”, ou seja, que uma manifestação sobrenatural do Espírito é obrigatória e necessária para todos os cristãos, então o livro de Atos falha em confirmar esta teoria, pois o que se percebe é que: (a) o ser batizado com o Espírito só ocorreu em Atos 2 e em Atos 10; (b) as outras doações de dons milagrosos do Espírito sempre foram mediadas pela imposição de mãos apostólicas (At 8.18; 19.6). Nos primeiros 5 capítulos de Atos, só os apóstolos manifestam poderes sobrenaturais. Os primeiros não-apóstolos a manifestarem poder de fazer milagres são aqueles que receberam imposição de mãos de um apóstolo.
Percebe-se, justamente em Atos 8, que somente os apóstolos poderiam passar o dom aos samaritanos. Apesar de Filipe ter recebido o poder de fazer milagres por imposição de mãos (At 6.6) ele não os podia passar aos samaritanos. Isto destrói a ideia de que o “ainda não” pudesse ser resolvido pela simples imposição de mãos de Filipe.
A teoria da subsequência falha por não poder apresentar os meios desta subsequência: (a) ninguém mais foi batizado no Espírito como Atos 2 e 10; (b) ninguém que não fosse apóstolo poderia transmitir dons sobrenaturais do Espírito.
Assim, apesar dos exegetas carismáticos levarem a sério a palavra “ainda não”, não conseguem ligar este “ainda não” com a continuidade do “ser batizado com o Espírito” e nem conseguem que a imposição de mãos apostólicas tenha continuidade depois da morte dos apóstolos. Logo, o “ainda não” que devia ter ocorrido, mas não ocorreu, não pode referir-se à manifestação de dons milagrosos do Espírito Santo.
Isto nos leva à terceira teoria, que, ao nosso ver, soluciona todas as questões e oferece uma resposta coerente para o problema.
Teoria 3: Os samaritanos não receberam nada do Espírito
Esta terceira hipótese tem sido defendida pela simples leitura do texto, sem preocupação com esta ou aquela linha teológica, no que diz respeito ao cessacionismo ou ao pentecostalismo-carismatismo.
Também se parte do pressuposto que muitas coisas narradas em Atos não são coisas normais, mas excepcionais. Uma experiência narrada em Atos só pode ser tomada como “norma” ou “padrão” se outros textos claramente o indicarem. Em textos narrativos, o poder normativo depende de análise do resto do Novo Testamento e do contexto.
O que ocorreu com os samaritanos, em Atos 8 foi uma aberração, uma exceção: eles foram batizados conforme Atos 2.38, mas “ainda não” (οὐδέπω) receberam o Espírito Santo. Contudo, deviam ter recebido, mas apenas (somente –monon) receberam o batismo: “Tinham apenas sido batizados em nome do Senhor Jesus” (At 8.16).
Vários comentaristas assinalam o fato que esta situação é um desvio da regra normal:
“... os crentes samaritanos, apesar de batizados por Filipe ‘no nome do Senhor Jesus’ (v. 16), não tinham recebido, no mesmo momento, o dom do Espírito Santo.” (BRUCE, 1977, p.181).
“o Espírito não havia ainda descido sobre nenhum deles (para esta expressão, ver 10.44; 11.15). Tudo quanto acontecera era que haviam sido batizados em o nome do Senhor Jesus. Esta é, talvez, a declaração mais extraordinária em Atos. Noutros trechos, fica claro que o batismo em nome de Jesus leva ao recebimento do Espírito (2.38)” (MARSHALL, 1982, p. 152)
“O quadro deu um batismo sem a recepção do Espírito não vem de um antigo não-ou-pré-pneumático entendimento do batismo. Esta é uma construção ad hoc (cf. 10.44-48; 19.1-7) que pressupõe precisamente a íntima conexão entre batismo e o Espírito.” (CONZELMANN, 1987, p. 67).
“... o que faltava a estes discípulos era o dom do Espírito Santo. A pergunta óbvia depois disso é: por que? E a única resposta possível é que não sabemos. No já citado texto, 2.38, Pedro parece indicar que o dom do Espírito Santo virá sobre todos que estão ouvindo logo que ser arrependerem e forem batizados. [...] tudo o que pode ser dito é que, de acordo com Atos, o Espírito é absolutamente livre para decidir onde ser derramado e onde se manifestar...” (GONZÁLEZ, 2011, p. 137-138)
Frederick Dale Bruner (1983), em seu livro clássico “Teologia do Espírito Santo”, trabalha muito bem a questão. Ele afirma que:
“No relato das conversões samaritanas, temos o único registro do Novo Testamento de pessoas que creram, aceitaram o batismo cristão, e que mesmo assim ainda não receberam o Espírito Santo” (BRUNER, 1983, p. 137).
Para este autor, o batismo cristão e o dom do Espírito Santo sempre foram uma coisa só para a igreja primitiva (BRUNER, 1983, p. 138). Contudo, o que ocorreu em Samaria era algo fora do comum. O texto de Atos 8.16 marcou isto com duas palavras: “ainda não” e “somente”:
“Lucas relata que os crentes samaritanos somente(monon) tinham sido batizados, indicando que o suficiente ainda não ocorrera, como realmente não tinha. Ser batizado e não receber o Espírito Santo era uma anormalidade e, de fato, conforme a passagem passa a ensinar, uma contradição de realidades cristãs. Esta impossibilidade é ressaltada por uma palavra ainda mais importante no v. 16. A palavra introduz o versículo e é acentuada por sua posição no início da frase em grego: ‘Ainda não oudepohavia caído o Espírito Santo sobre nenhum deles’. O significado é o seguinte: O Espírito devevir com o batismo, mas esta vinda ‘ainda não’ ocorrera. O relacionamento entre o batismo e o Espírito, indica o ‘ainda não’, é o relacionamento da coesão. (BRUNER, 1983, p. 139).
Para Bruner, o evento de Atos 8 foi uma grande exceção para assegurar duas lições importantes: “a centralidade dos apóstolos e a união da igreja” (BRUNER, 1983, p. 139). “Tanto a tradição quanto a união foram conservadas através da visitação apostólica” (BRUNER, 1983, p. 138).
Assim, o evento samaritano é a exceção que prova a regra: o normal é receber o Espírito no batismo (At 2.38), mas em Samaria, a regra não foi seguida para que algo superior se alcançasse: (i) paz entre os judeus e os samaritanos; (ii) continuidade de testemunho cristão apostólico transcultural; (iii) unidade na igreja.
Intérpretes mais antigos, de igrejas que valorizam os sacramentos e a sucessão apostólica, têm a tendência de ver neste texto outras coisas: (i) ou justificam o sacramento da confirmação; (ii) ou justificam a sucessão apostólica (BRUCE, 1977, p. 182; LONGENECKER, 1981, p. 359). Não discutirei aqui estas perspectivas por serem um olhar tardio retroprojetado anacronicamente para o texto antigo que não faz nenhuma referência a tais costumes.
Alguns tentam explicar o problema em Samaria de dois outros modos: (1) Filipe não seria uma pregador apto para realizar o trabalho e por esta causa o trabalho ficou “incompleto” até que os apóstolos viessem; (2) O erro que não transmitiu o Espírito aos samaritanos foi a fórmula batismal equivocada que ocorre aqui “em nome do Senhor Jesus”, εἰς τὸ ὄνομα τοῦ κυρίου Ἰησοῦ. Não irei discorrer longamente sobre estas duas objeções, mas oferecerei duas respostas rápidas, que ao meu ver, eliminam estas objeções. Sobre a explicação (1), o texto bíblico em nada desqualifica Filipe e ele não teve qualquer dificuldade na continuidade de seu trabalho com o eunuco etíope e nas muitas cidades que evangelizou (At 8.26-40). Sobre explicação (2), as fórmulas batismais neotestamentárias são variadas e equivalentes – não é necessário encontrar controvérsias posteriores nestes textos tão primitivos.
RESUMO E CONCLUSÕES
Para sistematizar o que foi discutido, apresento a seguinte tabela resumo:
Teoria 1
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Teoria 2
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Teoria 3
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Samaritanos não receberam nada milagroso do Espírito Santo
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Samaritanos não receberam nada milagroso do Espírito Santo,
mas deviam ter recebido algo milagroso |
Samaritanos não receberam nada do Espírito Santo.
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Atos 2.38 ocorreu
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[Atos 2.38 não conta]
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Atos 2.38 não ocorreu
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Receberam o perdão de pecados e receberam o dom do Espírito Santo
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Receberam o perdão de pecados
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Receberam o perdão de pecados e nãoreceberam o dom do Espírito Santo
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A imposição de mãos deu os dons milagrosos
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A imposição de mãos deu os dons milagrosos
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A imposição de mãos deu o Espírito Santo que não tinha vindo no batismo
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Não ocorreu exceção: eles tinham o dom do Espírito, mas não os poderes miraculosos do Espírito.
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Ocorreu uma exceção:
o ser batizado no Espírito Santo não ocorreu. |
Ocorreu uma exceção: eles foram batizados para perdão de pecados, mas o Espírito Santo só veio pela imposição de mãos dos apóstolos.
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Tradicional
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Pentecostal
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Solução
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Pontos fortes: respeita a normalidade de Atos 2.38.
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Pontos fortes: leva a sério a linguística do texto.
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Pontos fortes: leva a sério a linguística do texto.
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Pontos fracos: tropeça na linguística e fica inconsistente com o cessacionismo.
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Pontos fracos: requer uma norma que não se confirma no resto dos Atos e do NT.
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Pontos fracos: requer uma exceção inesperada em Samaria com respeito a Atos 2.38.
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Pessoalmente, no passado entendia a perspectiva da teoria 1 como a mais adequada, mas depois de “ler” as exigências da linguagem do texto, optei pela teoria 3. A teoria 1 é inconsistente com o cessacionismo dos dons milagrosos.
Espero que este estudo contribua para o melhor entendimento deste importante detalhe da história da igreja e seu desenvolvimento em unidade e verdade.
Para estudar mais este assunto, adquira os cursos:
· TD231a-Estudos sobre o Espírito Santo (1)
e
· TD231b-Estudos sobre o Espírito Santo (2)
BIBLIOGRAFIA CITADA:
BARRETT, C. K. A Critical and Exegetical Commentary on the Acts of the Apostles: Volume 1 - Preliminary lntroduction and Commentary on Acts I-XIV. Edinburgh: T&T CLARK, 1994.
BRUCE, F. F. Commentary on the Book of Acts of the Apostles. Grand Rapids: Eerdmans, 1977.
BRUNELLI, Walter. Teologia para Pentecostais:uma teologia sistemática expandida. Vol. 2. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2016.
BRUNER, Frederick Dale. Teologia do Espírito Santo. São Paulo: Vida Nova, 1983.
CAMPBELL, Alexander. Acts of the Apostles: translated from de Greek on the basis of the Common English Version. Nashville: Christian Family Books, 1858.
CONZELMANN, Hans. Acts of the Apostles (Hermeneia). Philadelphia: Fortress Press, 1987.
DUTTON, Garner Allen. O Espírito Santo de Deus: No Eterno Propósito. São Paulo: Vida Cristã, 1980.
GONZÁLEZ, Justo L. Atos: O Evangelho do Espírito Santo. São Paulo: Hagnos, 2011.
LINCOLN, C. W. “Abe”. Comentário do Livro Atos dos Apóstolos: Os Primeiros Anos do Cristianismo. Recife: Ed. EBNESR, 2016.
LONGENECKER, Richard N. The Acts of The Apostlesin: GAEBELEIN, FRANK E. The Expositors Bible Commentary John and Acts. Vol. 9. Grand Rapids: Zondevan, 1981.
LOUW, Johannes; NIDA, Eugene. Léxico Grego-Português do Novo Testamento: baseado em domínios semânticos. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.
MACARTHUR JR, John F. Os Carismáticos. São Paulo: Ed. Fiel, 1981.
MARSHALL, I. Howard. Atos: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1982.
PESTANA, Álvaro César. O Espírito Santo (parte 1). São Paulo: Editora Vida Cristã, 2000.
[1]Também em PESTANA, Álvaro César. O Espírito Santo (parte 1). São Paulo: Editora Vida Cristã, 2000, p. 25-27. Também disponível em www.teologiaemcasa.com.br/cursos.
[2]Encontrei a leitura οὐπω no texto grego da obra CAMPBELL, Alexander. Acts of the Apostles: translated from de Greek on the basis of the Common English Version. Nashville: Christian Family Books, 1858, p. 54. O termo é um sinônimo de οὐδέπω, mas é estranho encontrar esta variação aqui, já que não se baseia em nenhum manuscrito.
[3]Apesar de citarmos vários autores que usam a expressão “batismo com/no Espírito Santo”, entendemos que esta frase e construção não é bíblica: nunca o Novo Testamento usa a frase “batismo do/no/com Espírio Santo”.