O sofrimento e o mal
Álvaro C. Pestana
2020
São um mistério.
Como um Deus bom, criador de todas as coisas permite o sofrimento e o mal?
Estamos certos da instrução que diz que o sofrimento pode fazer com que todas as coisas cooperem para o bem…
· Mas não é dito que todas as coisas são boas;
· e não é afirmado que o mal não existe;
· não se diz que o sofrimento é uma ilusão;
· menos ainda que o bem e o mal são a composição dual e necessária da realidade.
Como o mal veio a existir? Como o sofrimento se relaciona com o mal? Todo sofrimento é um mal? Todo mal gera sofrimento?
O MAL
Como é possível o mal?
Uma via de pensamento pode ser trabalhada do conceito de “criação”. O que é a criação? É aquilo que veio do nada por poder e ordem do Criador… creatio ex-nihilo!!
Ora o conceito de Deus ser a criação é absurdo, pois gera a necessidade de Deus ser criador de si mesmo - o panteísmo é absurdo para quem crê em criação. E já que o sofrimento e o mal existem na criação, ou Deus estaria ligado por natureza a eles, ou eles não existiriam, pois seriam um erro de avaliação do que existe e de Deus.
Ora o conceito de Deus criar a criação dentro de si mesmo, panenteísmo, é absurdo, pois se Deus criou a criação dentro de si e em si, então, Deus teria feito um dos vários absurdos: (i) Deus teria criado algo de Deus; (ii) Deus teria modificado Deus; (iii) Deus teria participação no mal e no sofrimento, pois ele seriam parte partes dele por serem partes da criação.
Ora o conceito de Deus não ser, de qualquer forma, ligado ao mal ou ao sofrimento, faria com que estes tivessem “asseidade”, ou seja, existiriam por si mesmos, logo, neste aspecto, seriam como Deus. Isto poderia nos levar ao dualismo: o bem e o mal, co-iguais e co-eternos. O dualismo é absurdo! Deus não pode ser o bem e o mal.
Assim, adotamos o conceito judaico-cristão de Deus Criador, conforme a Bíblia.
Logo, a criação está distinta de Deus, embora Deus possa se fazer presente. Transcendência com imanência relativa: este é o milagre da criação. Imanência absoluta diviniza a criação e confunde criatura e Criador: isto não é possível.
O grande milagre da criação é a capacidade de Deus de “ausentar-se” e, assim mesmo, não deixar apenas o vazio, o vácuo, mas em sua ausência deixar “algo”, trazer “algo” à existência.
Ora, Deus não é afirmado como “alguém que existe”, mas como “alguém que é”… seu poder é o de fazer com que “algo” exista.
A criação é algo que existe, tendo passado a existir pela palavra do Criador, tendo, portanto, a possibilidade do retorno à não existência.
O bem existe e o mal existe, logo, são criações, mas de que natureza? O mal é corruptela do bem, logo, tem natureza dependente do bem. O bem é o que foi criado… o mal veio depois.
Mas como o mal pode produzir-se à partir do bem? Que poder ele tem?
Na verdade, não é um poder, mas uma falta, uma ausência, uma perda, uma ausência de poder, uma fraqueza, um abandono da imanência, um atirar-se para o “não ser”, um retorno à “não criação”. O mal é o bem que deixou de existir. O mal é a ausência do bem.
A criação exige o afastamento divino. A transcendência divina retrata este afastamento. A imanência divina representa o esforço divino de se fazer presente sem, contudo, usurpar a criação em sua independência do divino: a criatura continua criatura e não é tomada ou absorvida pelo Criador.
A “exigência” do afastamento divino não é imposta a Deus, pois a Deus nada se impõe, mas trata-se de uma manifestação do poder de Deus de fazer com que seu poder, impossível de ser afastado, se afaste não por coerção ou intimidação ou força contrária, mas por opção de graça para dar a outro, algo que ele tem, participação no “ser” e vir-a-ser… existir.
Se Deus não se afastar, nada pode surgir, mas se ele se afastar a uma “distância” adequada e conhecida apenas por ele como Criador, pode criar o que não poderia existir por si mesmo.
Este afastamento e “permissão de ser/vir-a-ser” é um bem, uma coisa boa, pois transmite existência, participação no ser, para o que não é e nem poderia ser. Logo, dá independência para o dependente, existência para o inexistente e possibilidade de poder para o impotente.
É neste “espaço” que o mal pode instalar-se: Deus se retira e permite independência, existência e poder - logo, um pequeno passo pode ser tomado para que o mal venha a ser constatado.
A falsa independência, a negação da independência, a negação da existência ou o mal uso do poder geram o mal. O espaço fornecido é usado para negar o ato gracioso divino... é usado para afastar-se do divino.
O mal corrompe o espaço que Deus deu em espaço onde não há Deus, onde Deus é negado, onde a existência é negada. Assim, o bem se retira - mas não devia ter se retirado, e surge o mal. Trata-se de um uso equivocado, errado da permissão divina para a existência, para o vir-a-ser de algo que não é… que nega o ser e o poder.
Usando a linguagem de Dorothy L. Sayers (2015, p. 96)[1], “somente X pode dar realidade a Não X”. Assim, como a criação do Tempo resultou na possibilidade de qualificar “o tempo em que não havia Tempo”, Deus pode criar o Não Ser que não é Deus, mas que retira seu estatuto da existência de Deus assim como “o buraco da rolha é tão real quanto o barril, mas essa realidade depende da realidade do barril”.
Sayers (2015, p. 97) vai afirmar que a criação possibilita a anti-criação. Usando seu exemplo literário, a criação de Hamlet permite imaginarmos muitos anti-Hamlet, contudo, isto ainda é apenas a imaginação de uma situação. Se alguém encarnar e vivenciar, por experiência, o anti-Hamlet, algo terá surgido. Logo, o mal, como anti-bem, só vem à existência por conta da existência do bem, e na condição de negação do mesmo, não em imaginação ou teoria, mas de fato e experiência. Deus pode criar o bem e conhecer o mal apenas pela força de sua inteligência ou de sua capacidade de prever e antever, mas não como categoria de Ser. O ser humano, contudo, em sua limitação, sendo criatura, tentando conhecer o mal, só o faz por experiência, ou seja, só o faz trazendo o mal à realidade, logo, o mal é o anti-bem, a negação do bem, a distorção do bem que Deus fez.
O mal só ocorre na ausência de Deus.
Se o inferno é a ausência completa de Deus, algo completamente misterioso ocorre: o não-ser ganha existência, o que é absurdo!! O inferno é o absurdo do ser tornando-se não-ser e precipitando-se na ausência de Deus, na incapacidade de lidar com seu estado e na inanição do mal para o bem… só consegue ficar no mal… o mal é a corrupção do bem, neste caso, ser não sendo, continuar existindo sem existir plenamente.
Prometeu, preso no rochedo ao lado do Rio Estige, tendo seu fígado eternamente devorado pelo abutre de dia e sendo restaurado de noite, afirma o fato que nem mesmo os deuses podem negar os votos feitos sobre as águas do Estige, sob risco de ficar, como Prometeu, presos a uma existência de não-existência por ter quebrado seu juramento divino. Um limbo no qual a complexidade do mal se confronta com a negação do ser.
O SOFRIMENTO
O sofrimento é um mal com possibilidade de remissão para o bem. Ele decorre da ausência de Deus, como todo mal, mas Deus pode assumir este mal e assim levá-lo para o bem sem anular sua existência. Deus sofre, assume o sofrimento e, desta forma, torna-o suscetível de vir a ser de modo autêntico, próprio e criativo: o sofrimento existe e participa do ser. O sofrimento torna-se um mal em processo de ser redimido para o bem. O sofrimento é um mal, mas como pode ser assumido por Deus, pode ser recriado: seu nada pode vir a ser algo, pode vir-a-ser. O mal que não é o sofrimento, mas que causa o sofrimento, por si mesmo, que não pode ser assumido por Deus, pois este tipo de mal é a negação do ser, incompatível com Deus, que sempre é.
Então, o que não pode ser assumido por Deus, na eterna comunhão com ele, se extinguira, assumirá aquilo que optou por ser, ou seja, “o-não-ser”, e deste forma se dissolverá no nada.
Por outro lado, o mal, assumido na ausência de Deus, mas possibilitado pela retirada e afastamento de Deus, este se mantem nesta ausência e retirada, numa eterna e contínua negação do ser: o inferno. É uma contínua negação do ser, que no limite chegaria à extinção, mas tem seu caráter maligno e pernicioso por retirar do bem sua capacidade de ser enquanto negação do bem, logo, uma negação e uma anulação sem fim... Inferno eterno.
Bibliografia:
LEWIS, C. S. CRISTIANISMO PURO E SIMPLES. São Paulo: Abu Editora, 1979.
LEWIS, C. S. MILAGRES: UM ESTUDO PRELIMINAR. São Paulo: Mundo Cristão, 1984.
LEWIS, C. S. O GRANDE ABISMO. São Paulo: Mundo Cristão, 1984.
LEWIS, C. S. O PROBLEMA DO SOFRIMENTO. São Paulo: Mundo Cristão, 1983.
SAYERS, Dorothy L. A MENTE DO CRIADOR. São Paulo: É Realizações, 2015.
[1] Todo o restante do texto já estava escrito quando em 2020 li esta autora e, para minha surpresa, ela caminhava para a explicação do mal com um raciocínio muito semelhante. Mas escrevo isto para ressaltar que toda a outra pesquisa é independente, embora baseada em Santo Agostinho e em C. S. Lewis, que por sua vez, também foi influenciado por Dorothy L. Sayers. Somente este parágrafo e o próximo foram adicionados a este raciocínio sobre o mal e o sofrimento em 2020.