A ressurreição dos santos na morte de Jesus
Álvaro C. Pestana
2020
2020
Mateus 27.50-54
50 E Jesus, clamando outra vez em alta voz, entregou o espírito.
51 Eis que o véu do santuário se rasgou em duas partes, de alto a baixo; a terra tremeu e as rochas se partiram; 52 os túmulos se abriram, e muitos corpos de santos já falecidos ressuscitaram; 53 e, saindo dos túmulos depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos. 54 O centurião e os que com ele guardavam Jesus, vendo o terremoto e tudo o que se passava, ficaram possuídos de grande temor e disseram:
— Verdadeiramente este era o Filho de Deus.
Mateus 27.50-54
50ὁ δὲ Ἰησοῦς πάλιν κράξας φωνῇ μεγάλῃ ἀφῆκεν τὸ πνεῦμα.
51Καὶ ἰδοὺ τὸ καταπέτασμα τοῦ ναοῦ ἐσχίσθη ἀπ’ ἄνωθεν ἕως κάτω εἰς δύο καὶ ἡ γῆ ἐσείσθη καὶ αἱ πέτραι ἐσχίσθησαν, 52καὶ τὰ μνημεῖα ἀνεῴχθησαν καὶ πολλὰ σώματα τῶν κεκοιμημένων ἁγίων ἠγέρθησαν, 53καὶ ἐξελθόντες ἐκ τῶν μνημείων μετὰ τὴν ἔγερσιν αὐτοῦ εἰσῆλθον εἰς τὴν ἁγίαν πόλιν καὶ ἐνεφανίσθησαν πολλοῖς.
54Ὁ δὲ ἑκατόνταρχος καὶ οἱ μετ’ αὐτοῦ τηροῦντες τὸν Ἰησοῦν ἰδόντες τὸν σεισμὸν καὶ τὰ γενόμενα ἐφοβήθησαν σφόδρα, λέγοντες· ἀληθῶς θεοῦ υἱὸς ἦν οὗτος.
Este texto é um grande enigma dos evangelhos. Só se encontra no Evangelho de Mateus, o que nos deve levar a pensar na relevância dele para a comunidade judaica da Palestina e para a comunidade judaica (de Antioquia?) que estava engajada na pregação aos gentios. Este é o tipo de informação que devia ser originado nas mais antigas tradições cristãs de Jerusalém e da Palestina (ALLEN, 1965, p. 296; LUZ, 1989, p. 561).
Luz (1989, p. 562-565) sumariza a história das interpretações de Mateus 27.51-54 em cinco grupos: (i) histórico-salvífica: a salvação vai para os gentios pela cegueira dos judeus; (ii) cristológica: o poder da morte de Jesus trouxe vida; (iii) credal: o texto prova a estada de Cristo no Hades; (iv) alegórica: interpretação histórico-salvífica e existencial; (v) escatológica: o texto aponta para a futura ressurreição dos mortos na parousia.
As interpretações são muitas, mas podemos classifica-las em três grupos, conforme a avaliação da realidade dos fatos: (i) algumas interpretações negam o milagre considerando-o como mito ou símbolo; (ii) outras interpretações afirmam o milagre, mas o reposicionam cronologicamente após a ressurreição de Jesus; (iii) várias interpretações afirmam o milagre sem negar a descrição cronológica de seu acontecimento. Nossa perspectiva será esta terceira, depois de avaliar as anteriores.
(i) Negação do milagre
A leitura que descarta o texto como lendário, fabuloso e, portanto, mítico e simbólico, normalmente toma como pressuposto uma forma de colonialismo cultural que desacredita das experiências dos antigos, sobretudo em matéria religiosa (FENTON, 1987, p. 444). Contudo, o texto é claro em inserir esta narrativa como ingrediente da história objetiva que está sendo narrada. Toda a narrativa da morte, sepultamento e ressurreição de Jesus, que circunda este texto, não se apresenta como literatura simbólica, lendária ou fabulosa. Logo, não se pode afirmar que Mateus inseriu um gênero literário estranho ao contexto: uma lenda no meio de uma narrativa testemunhal da história? Não parece uma opção razoável. Apesar do texto tratar de “assunto de fé, e não de demonstração objetiva [...] trata-se de uma ocorrência única que não pode ser julgada pelos cânones da experiência normal” (FRANCE, 1989, p. 401).
A tentativa de ler o texto apenas como experiência mística em face da morte terrível e violenta de Jesus (ROBINSON, 1960, p. 231) não tem real justificação na linguagem realista e histórica do texto.
Também a afirmação que “a lenda é uma extrapolação da fé cristã em forma de história” (FENTON, 1987, p. 444), fazendo com que Mateus tomasse um ensino figurativo e o tomasse como evento real (FILSON, 1975, p. 297) atribui ao autor do Primeiro Evangelho um erro gravíssimo.
Davies (2009, p. 228) apresenta a ideia que a narrativa não fala de uma realidade histórica, mas olha para o futuro, a ressurreição dos mártires do passado, que ocorrerá no fim dos tempos, no tempo da ressurreição de todos os homens. Assim, ele transforma a narrativa em escatologia imaginada. Gurtner (2007, p. 152) também advoga que o texto deve ser lido como literatura apocalíptica e não historicamente.
Hendriksen (1976, p. 975) menciona intérpretes que dizem que o que ocorreu foi apenas uma “exposição” de corpos de santos mortos: o terremoto teria aberto túmulos e Deus expôs, desta forma, os corpos dos mortos fora dos túmulos. Poderia ser um milagre divino ou uma ocorrência natural devida ao terremoto, mas não teria ocorrido nenhuma ressurreição. O problema com esta teoria é a linguagem do texto: os versos 52 e 53 falam de ressurgir e de aparecer vivos na cidade, uma vez saindo dos túmulos.
Em resumo, o texto não é lenda fabulosa, não é relato de experiência mística, não é extrapolação do ensino ou das expectativas judaico-cristãs e não se trata de texto simbólico-apocalítico inserido no meio de um texto que descreve acontecimentos históricos. Persiste a descrição, que o próprio texto faz de si mesmo como história.
(ii) Rearranjo do milagre
Outros, já acolhendo o texto como relato de milagre de ressurreição, tentam rearranjar os eventos, para que a ressurreição destes “santos” ocorra no domingo, quando Jesus ressurgiu dos mortos: “eles ressuscitaram no mesmo momento que Jesus” (CARSON, 1994, p. 130). Hendriksen (1976, p. 975) menciona outro intérprete que também tenta projetar esta ressurreição para o domingo da ressurreição, para que Jesus seja o primeiro da ressurreição (1Co 15.20). Lenski (1964, p. 1130) cita e rejeita a suposição de uma ressurreição “gradual”, iniciando na sexta-feira e culminando em sua efetiva saída dos túmulos no domingo.
O texto é claro em dizer que a ressurreição destes santos ocorreu no momento da morte de Jesus, e não no domingo da ressurreição.
(iii) Acolhimento do milagre
Plummer (1910, p. 404) sumariza esta interpretação dizendo:
Aqueles que aceitam a tradição como verdade consideram-na plena de sentido espiritual compatível com o caráter sobrenatural da morte de Nosso Senhor em relação aos santos falecidos, sustentando que isto foi uma manifestação do seu poder sobre a morte e a sepultura (1) pela ressurreição de alguns do Hades, (2) por vesti-los com um corpo ressurreto, e (3) pela permissão de aparecer a aqueles que os conheciam então.
Os que acolhem o milagre da ressurreição destes santos, na sexta-feira na qual Jesus morreu, se dividem em dois grupos. De um lado estão os que creem que a ressurreição dos santos já lhes deu um corpo incorruptível – estas pessoas já estariam ressurretas como Jesus, para nunca mais morrer (LENSKI, 1964, p. 1130; HENDRIKSEN, 1976, p. 975-976; TASKER, 1980, p. 211-212). De outro lado, estão aqueles que creem que a ressurreição destes santos foi uma ressurreição do corpo biológico – como a ressurreição de Lázaro e de outras pessoas que Jesus trouxe da morte, mas que mais tarde morreram de novo.
O que é consenso de ambas as teoria é que:
(i) Ocorreu uma ressurreição real;
(ii) Ocorreu no momento da morte de Jesus, na sexta-feira;
(iii) Ocorreu como “profecia” da ressurreição de Jesus que ocorreria no domingo;
(iv) Ocorreu a aparição dos santos a outras pessoas apenas no Domingo, depois da ressurreição de Jesus.
A favor da teoria da ressurreição em um corpo incorruptível fica o fato que não houve qualquer outro testemunho da vida e presença destas pessoas na igreja primitiva de Jerusalém. A frase “e apareceram a muitos” (καὶ ἐνεφανίσθησαν πολλοῖς) segundo alguns autores, implica em uma manifestação como a de Jesus após a ressurreição: uma aparição aqui e ali (HENDRIKSEN, 1976, p. 975, nota 894c).
Também a favor da teoria da ressurreição em um corpo incorruptível temos o fato que estas pessoas ressurgiram na sexta-feira, mas só apareceram no domingo, portanto, a questão embaraçosa – “onde eles estavam de sexta-feira até domingo?” – se resolve facilmente se o seu corpo já for o corpo da ressurreição, um corpo como o de Jesus, que podia sumir e aparecer, como ocorreu nos relatos das aparições e nos 40 dias que se seguiram à ressurreição de Jesus. Assim como Jesus não estava sempre visível e sempre com as pessoas, assim também “Deus não teria dificuldade de achar um lugar para estes santos” (LENSKI, 1964, p. 1131). Se fossem pessoas normais, com um corpo biológico, tal demora junto aos túmulos seria embaraçosa. Hendriksen (1976, p. 976) considera esta demora de revelar-se como um evento não explicado, mas paralelo à situação das aparições do Cristo ressurreto.
A ideia de uma ressurreição gradual, começando na sexta-feira e culminando no domingo não faz sentido, pois não é o que o texto afirma (LENSKI, 1964, p. 1130).
A maior parte dos intérpretes entende que na morte de Jesus, alguns dos homens santos do Antigo Testamento teriam ressuscitado com a morte de Jesus (MOUNCE, 1966, p. 270-271). E que não iriam mais morrer, seriam tomados para o céu e ficariam com Deus até o dia da volta de Jesus, o dia da ressurreição geral etc. O problema com este ponto de vista é que Jesus é o Primogênito dentre os mortos (Cl 1.18) e as primícias da ressurreição (1Co 15.23), ou seja, o primeiro a ressurgir para nunca mais morrer. Além disso, não há qualquer atestação de ressurreição de nenhum vulto histórico importante do Velho Testamento nesta época. O próprio Pedro falou que Davi estava no seu túmulo naqueles dias (At 2.29). Ora Davi, seria um "santo" candidato à ressurreição. Logo, esta teoria fica com certas dificuldades.
Broadus (1968, p. 736-737) apresenta a teoria que estes “santos” seriam os “cristãos” (antes do Cristianismo), ou seja, pessoas que seguia Jesus e que teriam morrido antes da morte de Jesus. Eles apareceriam para seus conhecidos para dizer que não perderam a participação no Reino e que eram, junto com Cristo, as primícias dos que dormem. Novamente, se esta teoria for vinculada à teoria da ressurreição em um corpo incorruptível, o “sumiço” destes ressurretos depois de um tempo fica explicada, mas se a teoria da ressurreição em um corpo biológico for acolhida, resta o problema destas pessoas serem acolhidas nas primeiras comunidades cristãs, coisa de que não temos notícia ou qualquer indicação.
A favor da teoria de um corpo biológico está o fato que Jesus é o primeiro da ressurreição, o Primogênito dentre os mortos (Cl 1.18), ou seja, o primeiro a ressurgir para nunca mais morrer. Jesus somente é chamado de “as primícias dos que dormem” (1Co 15.23). Seria estranho que outros ressurgissem com ele para nunca mais morrer, logo, os que ressurgiram foram santos que, como outros ressurretos por Jesus, voltariam a viver e morrer normalmente.
Assim, uma outra teoria proposta é que, na morte de Jesus, alguns do povo de Deus, que a Bíblia chama sem constrangimento de "santos" teriam voltado à vida ---- seriam pessoas do povo de Israel que tinham morrido naqueles dias, seus corpos ainda não tinham se decomposto e quando Jesus morreu e venceu a morte, libertou-os da morte e eles puderam viver de novo. Os judeus criam que a alma do morto ficava perto do corpo até ver os primeiros sinais de apodrecimento. Quando o espírito (ou alma) via isto, logo se retirava para o além. Não estou afirmando que isto era verdadeiro e nem afirmado pelo Velho Testamento, mas na morte de Jesus ele efetivou uma libertação da morte que permitiu que alguns "santos mortos recentemente" voltassem à vida. Eles só entraram em Jerusalém no Domingo, depois da ressurreição de Jesus. Isto quer dizer que o que os salvou da morte, foi a morte de Jesus, mas o que permitiu que sua salvação fosse atestada por outros, foi a ressurreição de Jesus. Assim, estas pessoas voltaram a viver vidas normais e naturais, por causa da morte de Jesus. Claro que mais tarde, elas morreram. Não se trata de pessoas ressurretas para nunca mais morrer como será na ressurreição final (1Co 15; 1Ts 4), mas sim pessoas ressurretas como Lázaro, a filha de Jairo etc. Creio nesta interpretação, apesar de reconhecer que a menção de “e apareceram a muitos” (καὶ ἐνεφανίσθησαν πολλοῖς) ser um forte argumento para o fato destas pessoas serem corpos espirituais que “se manifestam” a alguns como Jesus fez.
Conforme Luz (1989, p. 562-565) a interpretação credal se utiliza deste o texto como mais uma “prova” da estada de Cristo no Hades. Esta interpretação tornou-se importante na história do cristianismo a ponto deste assunto vir a integrar o credo no Século Quarto. Lenski (1964, p. 1129) considera esta ligação como inaceitável.
Apesar de toda esta discussão e de não compreendermos exatamente o que tipo de ressurreição ocorreu, fica bem clara a lição ou a dedução teológica do acontecimento: a morte de Jesus dá vida aos santos! A morte dele liberta da morte e dá vida. Numa analogia da morte do Sumo-Sacerdote que libertava as pessoas presas nas cidades de refúgio (Nm 35) por conta de seu envolvimento com a morte de alguém, assim, de um modo mais glorioso, a morte de Jesus liberta os mortos.
De fato, estamos acostumados a dizer que a ressurreição de Jesus marcou a vitória sobre a morte, e estamos corretos nesta afirmação que é confirmada em muitos textos bíblicos. Contudo, o que este texto também ensina é que, a morte de Jesus também é triunfo sobre a morte, por mais paradoxal que seja.
Bibliografia citada:
ALLEN, Willoughby C. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel According to S. Matthew. Third Edition. Edinburgh: T. & T. Clark, 1965.
BROADUS, John A. Comentario Expositivo sobre el Nuevo Testamento – Tomo I – El Evangelio Segun Mateo. Segunda Edicion. [El Paso, TX]: Casa Bautista de Publicaciones, 1968.
CARSON, Donald A. “Matthew” In: BARKER, K. L.; KOHLENBERGER, J. R. Zondervan NIV Bible Commentary – Vol. 2 – New Testament. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1994.
DAVIES, Margaret. Matthew. Second Edition. Sheffield: Phoenix Press, 2009.
FENTON, J. C. The Gospel of St. Matthew. London: Penguim Books, 1987.
FILSON, Floyd V. The Gospel According to St. Matthew. London: Adam & Charles Black, 1975
FRANCE, R. T. The Gospel According to Matthew: An Introduction and Commentary. Leicester: Inter-Varsity Press, 1989
GURTNER, Daniel M. The Torn Veil – Matthew’s Exposition of the Dead of Jesus. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
HENDRIKSEN, William. The New Testament Commentay – The Gospel of Matthew. Edinburg: The Banner of Trust, 1976.
LENSKI, R. C. H. The Interpretation of St. Matthew’s Gospel. Minneapolis (Minnesota): Augsburg Publishing House, 1964.
LUZ, Ulrich. Matthew 21-28 – a commentary. Minneapolis: Fortress Press, 2005.
MOUNCE, Robert. H. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo – Mateus. São Paulo: Vida, 1996.
PLUMMER, Alfred. An Exegetical Commentary on the Gospel According to St. Matthew. London: Elliot Stock, 1910.
TASKER, R. V. G. O Evangelho Segundo Mateus: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1980.
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