Arrependimento de Deus
Álvaro C. Pestana
2020
A linguagem da Bíblia é sempre uma tentativa divina de encarnar-se no humano: Deus usa nossos termos para nos explicar as coisas[1].
Deus não pode usar sua linguagem para nos explicar as coisas, assim como não podemos usar linguagem técnica de adulto para explicar temas complicados para as crianças -- neste caso, também temos que adaptar nossa fala.
Podemos pensar, inicialmente, que falar de “arrependimento” de Deus como uma fala metafórica. Estamos transportando uma atitude humana para o divino.
A “metáfora” é a grande artífice da linguagem teológica, uma vez que Deus só pode falar ao homem em termos humanos:
Metáfora deriva do grego μεταφορά, "transferência, transporte para outro lugar", composto de μετά (meta),"entre" e φέρω (pherō), "carregar". Em seu sentido literal, o verbo grego metaphrein seria traduzido pelo verbo latino transferire. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Metáfora).
Na teologia temos, metáfora ou teologia metafórica:
É a figura de linguagem em que uma palavra ou expressão com significado aceito e literal é usada em lugar de outra para deixar transparecer alguma semelhança entre elas. A teologia metafórica sustenta que só se pode falar de Deus por meio de metáforas. (GRENZ; GURETZKI; NORDLING, 1999, p. 86-87).
Novamente, tudo o que falamos sobre Deus envolve, em um grau maior ou menor, alguma metáfora. Quando dizemos: “Deus é nosso Pai”, certamente dizemos algo verdadeiro sobre a forma como Deus nos trata: com amor, com carinho, com cuidado etc. Por outro lado, a metáfora não pode ser levada adiante de modo literal ou fora de seus limites intencionais originais. Se a partir da frase “Deus é nosso Pai”, começarmos a perguntar, “Então, quem é o nosso Avô, o pai de nosso Pai?”, estaremos ferindo a intenção original da metáfora que era descrever o cuidado de Deus conosco e não a ancestralidade divina.
Quando lemos no Salmo “O Senhor é meu pastor”, a metáfora, novamente, descreve o divino por meio de uma figura humana, mas a metáfora tem que parar por aí. Se pensarmos que pastores de rebanhos matam suas ovelhas para fazer um churrasco com sua carne, isto já não se aplica ao modo como Deus nos trata. Só se deve levar em conta o ponto de comparação da metáfora e não todos os sentidos possíveis daquela associação de Deus com a figura de um pastor de ovelhas da Palestina.
Logo, quando vemos a Bíblia, falar que “Deus se arrependeu”, temos que buscar no contexto qual o sentido deste uso de um termo humano para designar do divino. Da mesma forma, em outro lugar, da Bíblia, ao lermos que “Deus não se arrepende”, temos que entender, no contexto, o que quer dizer com este uso da linguagem.
Assim, quando a Bíblia em um contexto, fala do arrependimento divino, ela está convidando a aproximarmos o comportamento divino ao comportamento humano para podermos, por identificação, compreender. Contudo, as aproximação do divino ao humano não deve levar o humano a atribuir defeitos humanos ao divino.
O caso do "arrependimento" divino é assim:
· Há textos em que lemos que Deus não se arrepende (1Sm 15.29; Nm 23.19; Ez 24.14; Sl 110.4 [Hb 7.21[2]]; Jr 4.28),
· Mas há textos que dizem claramente que Deus e arrependeu (Gn 6.6, 7; Êx 32.14; 1Sm 15.11, 35; 2Sm 24.16; 1Cr 21.15; Jr 26.19; Am 7.3, 6; Jn 3.10).
· Há textos em que se pede que Deus se arrependa (Êx 32.12; Jn 3.9)
· E outras passagens em que Deus promete que vai se arrepender tanto do mal como do bem que ia fazer (Jr 18.8, 10; 26.3, 13).
· Uma das mais belas descrições de Deus no Velho Testamento é que ele "se arrepende do mal" (Jl 2.13-14; Jn 4.2).
· O não-arrependimento de Deus, muitas vezes, é acompanhado de ações contrárias à sua primeira ação (Zc 8.14-15).
Repare que os textos neste assunto são todos no Velho Testamento (exceto uma citação do VT no NT). Lendo os textos no contexto, percebemos que não há contradição.
Por exemplo, na história de Saul, temos dois usos contraditórios da ideia, sem real contradição.
(i) No início da narrativa, em 1Samuel 15.11, Deus diz: “Arrependo-me de haver constituído rei a Saul” (ARA).
(ii) Contudo, mais tarde na narrativa temos Samuel avisando a Saul que Deus escolheria outra pessoa para ser rei no lugar dele e completando o anúncio com a frase “A Glória de Israel não mente nem se arrepende; porquanto não é homem, para que se arrependa” (1Sm 15.29 – ARA).
(iii) O capítulo é finalizado com a frase: “O Senhor se arrependeu de haver constituído Saul rei sobre Israel” (1Sm 15.35 – ARA).
Ou seja, os textos que falam que Deus não se arrepende, estão dizendo que Deus não é movido pela inconstância humana, pela falta de capacidade de realizar seus intentos e que ele não falha para ter que mudar de ideia. Esta frase enfatiza o poder e a constância divinos (1Sm 15.29; Nm 23.19; Ez 24.14; Sl 110.4 [Hb 7.21[3]]; Jr 4.28).
Por outro lado, os textos que falam que Deus se arrependeu, está dizendo que Deus, conforme sua justiça ou sua misericórdia, está agindo de forma a dar uma resposta aos seres humanos. Ele pode se arrepender do bem que estava fazendo e enviar castigo, ou pode arrepender-se do castigo que projetava fazer e perdoar. Esta frase enfatiza o relacionamento real e verdadeiro de Deus com os homens (Gn 6.6, 7; Êx 32.14; 1Sm 15.11, 35; 2Sm 24.16; 1Cr 21.15; Jr 26.19; Am 7.3, 6; Jn 3.10).
O Livro de Jonas é um excelente exemplo do arrependimento divino e sua ligação com o caráter divino e com a condicionalidade das profecias. A obra é qualificada como uma “metaprofecia”, ou seja, uma profecia que explica a profecia. E um dos pontos mais salidentes é que “toda previsão do profeta é condicionada pela liberdade humana”. Ou seja, o que é dito não é dito como destino inexorável, mas como convite a assumir outro curso de ação. Foi isto o que ocorreu em Nínive. Eles se arrependeram e Deus se arrependeu da profecia e do juízo justo que havia planejado. O livro de Jonas é lido no serviço religioso judaico do Dia da Expiação, Yom Kipum (REHFELD, 2003, p. 151-155).
Deus não mente, Deus não erra, Deus não peca. Logo, coisas como estas, que normalmente geram o arrependimento humano, não tem ligação com o arrependimento divino. Este é o momento de aprender usar a metáfora apenas no ponto necessário da comparação.
Não adianta absolutizar uma das duas expressões, rejeitando a outra, como fazem os “teólogos de frases feitas” dizendo: “Deus não se arrepende... Deus não é homem!”... Tal simplificação da Bíblia é um convite à contradição e só se mantêm com muita teimosia contra o Livro Sagrado.
A linguagem bíblica não é linguagem técnica, nem linguagem jurídica e nem ainda linguagem filosófica. A maior parte da Bíblia usa linguagem poética e popular: a linguagem do povo. Assim, o sentido vem do contexto e vem de aprender usar as metáforas na intenção do discurso.
O Deus da Bíblia é poderoso mas relaciona-se conosco de modo que ele promete mudar de ação de conformidade com a nossa ação, tanto para o bem como para o mal. Logo, as cartas não estão marcadas, o destino não está decidido, e tudo não está escrito... cumpre a nós agir de acordo com a Revelação Divina.
A despeito das frequentes declarações em contrário, não há nenhuma contradição inerente entre uma afirmação mais antropomórfica do arrependimento de Deus e um entendimento mais espiritual do mesmo. Esta coexistência é baseada na polaridade da experiência de Deus. Yahweh é, por um lado, o “Deus Zeloso”, logo, ele não precisa ser arrepender de nada, e por outro lado, ele é “gracioso e misericordioso”, de forma que um desastre planejado não precisa ser sua última palavra” (STOEBE, 1997, p. 739).
Em conclusão, esta dificuldade é muito boa para nos ensinar um princípio hermenêutico importante. A revelação da Escritura exige ponderação e sabedoria. O exemplo abaixo, do Livro de Provérbios, é um alerta para aprendermos a dialogar com os textos bíblicos, buscando o espírito da Escritura, já que ela é a Escritura do Espírito:
4 Não responda ao insensato
segundo a sua tolice,
para que você não se torne
semelhante a ele.
5 Responda ao insensato
segundo a sua tolice,
para que ele não seja sábio
aos seus próprios olhos (Pv 26.4-5).
Veja que a contradição não é feita por acaso. Um verso sucede ao outro. A sabedoria existe em aprender a ponderar as aparentes contradições em um diálogo, uma dialética, que nos leva adiante no conhecimento de Deus, do mundo e de tudo mais, afinal, a vida humana não é simples e sem contradições – pelo contrário, parece que a vida é o contínuo enfrentar o irreconciliável. Deus nos trata como filhos que ele quer amadurecer e fazer crescer.
Termos hebraicos e gregos
A discussão sobre o “arrependimento de Deus” pertence ao Antigo Testamento, pois a expressão não ocorre, desta forma, no Novo Testamento, embora em expressões perifrásicas e em conceitos teológicos, o conceito persista até mesmo no Novo Testamento. Os vocábulos hebraicos para o tema são:
Nocham
· נֹחַם = arrependimento (masc.) (DINOTOS, 1962, p. 270);
· נֹחַמׇה = arrependimento, consolação, restauração (fem.) (DINOTOS, 1962, p. 270).
· נחם (verbo) = lamentar, sentir pesar, uma mudança de opinião, ceder, arrepender-se, confortar-se ou consolar-se (sobre uma situação triste ou ruim); (HOLLADAY, 2010, p. 332).
Shuv – na Bíblia tem uns dez sentidos diferentes (HOLLADAY, 2010. p. 515-517), mas três são destacados com respeito ao tema “arrependimento” (i) O primeiro sentido básico é “voltar-se, retornar” geralmente falando de pessoas e às vezes de Deus; (ii) o segundo uso é como verbo auxiliar para enfatizar repetição do verbo principal; (iii) o terceiro uso, teologicamente mais relevante, é o arrependimento: voltar para a comunidade da Aliança (HAMILTON, 1998, p. 1532-1533).
· שׁוּב = (verbo) voltar, repetir, trazer de volta (DINOTOS, 1962, p. 428);
· שׁוּב = voltar-se, retornar (HAMILTON, 1998, p. 1534);
Teshuvah – na Bíblia não ocorre como arrependimento, mas hoje em dia é muito usado pelos judeus para falar do retorno à aliança (REHFELD, 2003, p. 152).
· תְשׁוּבׇה = volta, retorno, resposta, arrependimento, retorno ao nome do Senhor (DINOTOS, 1962, p. 469);
· תְשׁוּבׇה = resposta (ACHIASAF, 2018, p. 313);
· חֲזׇרׇה תְשׁוּבׇה = penitência (ACHIASAF, 2018, p. 313).
· תְשׁוּבׇה = retornar (para um lugar), resposta (HOLLADAY, 2010, p. 563).
Charatah – na Bíblia não ocorre como arrependimento.
· חֲרׇטׇה = arrependimento (ACHIASAF, 2018, p. 27);
· חֲרׇטׇה = mágoa, pesar, arrependimento [do hebraico mishnaico e talmúdico] (DINOTOS, 1962, p. 149);
Os vocábulos gregos sobre o arrependimento não são tão importantes para nossa discussão quanto os termos hebraicos, pois não se aplicam diretamente a Deus. O tema ocorre no Novo Testamento em expressões, normalmente vindas da Tanakh. Por exemplo: Atos 15.16[4] fazendo uma alusão rápida, mais ou menos livre, a Jeremias 12.15[5]. O texto de Jeremias falava de Deus “voltando” (אָשׁ֖וּב), que corresponde a uma “conversão” (ἀναστρέψω) no texto de Atos.
Metanoia
· μετανοία = remorso, arrependimento, convesão (GINGRICH; DANKER, 1984, p. 134)
· μετανοέω = sentir remorso, arrepender-se (GINGRICH; DANKER, 1984, p. 134)
· μεταμέομαι = arrepender-se, sentir pesar (GINGRICH; DANKER, 1984, p. 134)
Bibliografia citada:
DINOTOS, Sábado. DICIONÁRIO HEBRAICO-PORTUGUÊS. São Paulo: Editora H. Koersen Ltda., 1962.
GINGRICH, F. W.; DANKER, F. W. LÉXICO DO NOVO TESTAMENTO GREGO PORTUGUÊS. São Paulo: Vida Nova, 1984.
GRENZ, Stanley J.; GURETZKI, David; NORDLING, Cherith Fee. DICIONÁRIO DE TEOLOGIA: EDIÇÃO DE BOLSO. São Paulo: Vida, 2000.
HAMILTON, Victor P. שׁוּב In WILSON, M. R. נחם In HARRIS, R. Laird; ARCHER JR, Gleason L.; WALTKE, Bruce K. (Ed.s). DICIONÁRIO INTERNACIONAL DE TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1532-1534
HOLLADAY, William L. LÉXICO HEBRAICO E ARAMAICO DO ANTIGO TESTAMENTO. São Paulo: Vida Nova, 2010.
REHFELD, Walter I. NAS SENDAS DO JUDAÍSMO. São Paulo: Perspectiva, 2003.
STOEBE, H. J. נחם In JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. THEOLOGICAL LEXICON OF THE OLD TESTAMENT. Peabody: Hendrickson, 1997, p. 734-739.
WILSON, M. R. נחם In Harris, R. Laird; Archer Jr, Gleason L.; Waltke, Bruce K. (Ed.s). DICIONÁRIO INTERNACIONAL DE TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 951-952.
WIKIPÉDIA “metáfora” Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Metáfora. Acessado em 30 de abril de 2020.
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